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Sola Scriptura, tradição católica e modernismo protestante

Por James Boice

Neste ponto, gostaria de refletir sobre a maneira como os reformadores lidaram com esse problema em sua época, particularmente porque temos distorções a respeito da visão dos reformadores no pensamento popular atual. Frequentemente dizemos (na Igreja Protestante, pelo menos) que os reformadores criam na Bíblia e a Igreja Romana, não. Isso não é verdade. Os reformadores “redescobriram” a Bíblia, se posso dizer assim. Quando a Igreja Romana começou esse mesmo processo, em parte por meio dos ensinamentos dos reformadores, descobriu que não gostava exatamente do que estava escrito na Bíblia. Por isso, fez ajustes em sua teologia com o intuito de manter suas tradições. Mas, no início, pelo menos em teoria, ambas as igrejas acreditavam que a Bíblia era a Palavra de Deus, e que nela Deus falara a verdade.

Ao formularem sua doutrina das Escrituras, os reformadores realmente lutaram uma batalha em duas frentes. Por um lado, tinham a Igreja Romana com suas tradições. Portanto, tiveram de falar sobre o papel das Escrituras no combate às tradições corruptas dos homens. Por outro lado, particularmente à medida que a Reforma prosseguia, eles foram confrontados com as excentricidades dos entusiastas e dos pietistas daquele tempo. Então também tiveram de falar com essas pessoas sobre a Palavra de Deus e o Espírito, e como eles operam em conjunto. E as respostas que eles deram a esses dois grupos constituíram a sua doutrina da Bíblia.

No que se refere à tradição, que eles tinham herdado em parte da Igreja Romana da Idade Média, o princípio era que tanto na Igreja Romana quanto nas comunidades protestantes se entendia — e com razão — que as tradições existem e elas não são necessariamente ruins. Algumas podem ser ruins e outras podem ser boas; ou podem ser ainda totalmente indiferentes.

Assim, nos primeiros tempos da Reforma, o relacionamento adequado entre a Bíblia e a tradição seria entendido da seguinte maneira: a Bíblia, sendo a Palavra de Deus, era a única autoridade; e a tradição, por ser produzida pelo homem, era algo valioso de ouvir e com o qual aprender. Nessa visão — correta — a tradição era, obviamente, subordinada à Palavra de Deus, a única que é absolutamente confiável.

Mas aconteceu que, à medida que liam as Escrituras, os reformadores descobriam seus ensinamentos, começando com a grande doutrina da justificação somente pela fé. Essa doutrina foi escandalosa à luz da Igreja Medieval e sua prática de redenção, motivo pelo qual foi chamada por Calvino em algum lugar de “a tarefa sacramental monótona e árdua”. E quando os reformadores começaram a descobrir a Bíblia simplesmente por lê-la, reconheceram que ela não era indiferente à tradição. Ao contrário, estava começando a ser usada para julgar as tradições da Igreja. Assim, na visão dos reformadores, para que eles fossem fiéis às Escrituras, as tradições da Igreja tinham de mudar.

A Igreja Romana foi confrontada com um grande problema nesse ponto, porque algumas de suas tradições eram imensamente rentáveis. Por exemplo, os visitantes de Roma que hoje vão à Basílica de São Pedro para se maravilhar com toda a arte e arquitetura, muitas vezes não têm ideia de que essa estrutura belíssima foi construída com o dinheiro proveniente das indulgências que tanto indignaram Lutero. Na época, as tradições da Igreja, no julgamento de Lutero, eram culpadas de permitirem a venda de salvação. Certamente, essa era a maneira como as indulgências funcionavam em grande parte do mundo da época.

O que a Igreja Romana deveria fazer? Os reformadores estavam denunciando esse tipo de prática, fundamentados no ensinamento reconhecido pela própria Igreja Romana. Assim, a Igreja de Roma convocou o Concílio de Trento para decidir a melhor estratégia para lidar com os reformadores. E o que ficou decidido sobre o lugar da tradição na teologia formal de seu sistema foi algo grave e muito infeliz. O Concílio afirmou que Deus não fala apenas por meio da sua Palavra, mas também pela tradição. Também disse que a Bíblia e a tradição não têm um relacionamento de mútuo julgamento, mas estão ambas no mesmo nível.

A Igreja Romana exaltou a tradição e a colocou no mesmo nível das Escrituras. Ela disse, de fato: “Bem, Deus fala das duas maneiras, portanto podemos manter essas coisas porque obviamente Deus tem falado por meio da combinação da sabedoria e do conselho dos cardeais e do Papa.” E, é claro, nós sabemos como essa visão das Escrituras e da tradição se desenrolou ao longo da História.

[symple_heading style=”” title=”O problema dos protestantes com as Escrituras” type=”h1″ font_size=”” text_align=”center” margin_top=”30″ margin_bottom=”30″ color=”undefined” icon_left=”” icon_right=””]

Na Igreja Protestante, o relacionamento adequado entre as Escrituras e a tradição foi mantido durante um longo período. Mas depois, como resultado do racionalismo e dos ataques do modernismo à Bíblia, ela começou a perder a posição privilegiada que mantivera ao longo de toda a história da Igreja, pelo menos nas mentes da maioria das principais denominações protestantes. Cada vez mais, ela não era vista como a Palavra de Deus ao homem e, portanto, verdadeira, confiável e inerrante. Em vez disso, começou a ser vista essencialmente como a palavra do homem a respeito de Deus. Os modernistas não estavam (pelo menos, nesse momento) dizendo que a Bíblia era necessariamente mentirosa. Mas afirmavam que ela era sujeita ao mesmo tipo de falha ou mistura de verdade e erro que tudo que é humano parece ter. Esse era o argumento defendido por eles.

Naquele momento, a Bíblia, na mentalidade das Igrejas Protestantes, foi retirada do lugar elevado que ocupara ao longo de todos os séculos do Cristianismo e colocada no mesmo nível que a tradição ocupava na época da Reforma. Porém, mesmo assim, teoricamente existe uma grande diferença entre a visão dos modernistas e o ponto de vista da Igreja de Roma. De acordo com o ensinamento de Roma, existe a certeza de que duas palavras são provenientes de Deus: as Escrituras e o ensino ex cathedra do Papa. De acordo com o modernismo, por sua vez, não temos certeza das palavras de Deus. Nós simplesmente temos pensamentos humanos confusos acerca de Deus, que podem ou não ser verdadeiros.

Por mais que esses dois pontos de vista sejam divergentes em teoria, na prática são muito convergentes. Isso ocorre porque os homens e as mulheres são pecadores e, se não tivermos o padrão objetivo da Palavra de Deus julgando as nossas tradições, acabamos preferindo-as à Palavra de Deus. Assim, embora tivesse os dois padrões, a Igreja Romana apoiou-se cada vez mais nas suas tradições, e não foi muito difícil para ela acabar desviando-se daquilo que a
Palavra de Deus diz claramente. Meu objetivo nesta discussão é simplesmente reiterar que precisamos recuperar a doutrina reformada das Escrituras. Precisamos fazê-lo no nosso tempo com força, inteligência e de maneira articulada.

Trecho do livro “Firme Fundamento: a inerrante Palavra de Deus em mundo errante”. Além de James Boice, obra apresenta sermões de outros pregadores reformados sobre a inerrância bíblica. Saiba mais.

 

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