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A Genebra de Calvino: uma comunidade piedosa

O ponto de partida é Genebra, cidade que antes da Reforma era famosa por sua imoralidade. Entre as depravações comuns na cidade rica estavam a embriaguez, a conduta desordeira, os jogos de azar, a prostituição e o adultério. Os cidadãos de Genebra eram conhecidos por ocasionalmente correrem nus pelas ruas entoando canções vulgares e até mesmo blasfemas. Práticas comerciais desleais, como a usura, eram comuns. A cidade também era perturbada por dissensões que um observador descreveu como “facções ímpias e perigosas”. Esperava-se que toda violência e deboche cessassem na década de 1530, quando as entidades governamentais de Genebra votaram por uma ruptura permanente com o Catolicismo Romano e por alinhar a cidade-Estado com as igrejas da Reforma Protestante. O que necessitava de reforma não eram simplesmente a adoração e a teologia da cidade, mas toda a sua atmosfera moral. Com esse intuito, o Conselho dos Duzentos  aprovou leis civis destinadas a promover a religião protestante e a restringir a indecência pública. Todavia, eles descobriram rapidamente o quão difícil é legislar a moralidade. Sem uma aplicação enérgica, as leis por si só fizeram pouca diferença e a decadência moral de Genebra não foi reprimida de modo geral.

O Conselho, entretanto, teve o mérito de reconhecer que a transformação moral não ocorreria sem uma proclamação bíblica, decidindo assim contratar um ministro mais bem preparado. Em agosto de 1536, um erudito jovem e brilhante chamado João Calvino passava por Genebra a caminho de Estrasburgo. Ele foi interceptado por William Farel, um reformador por seus próprios méritos, que reconheceu que Calvino tinha os dons pastorais e a determinação pessoal para promover a Reforma em Genebra. Calvino, porém, começou devagar, descobrindo em sua chegada que a cidade estava imersa em caos e desordem ainda maiores do que ele esperava. Além disso, sua pregação provou ser impopular, especialmente quando ele insistiu que, para exercer sua própria autoridade dada por Deus, a Igreja precisava ser livre do controle secular. Dois anos depois, Calvino foi demitido de suas funções pastorais e banido para Estrasburgo. Entretanto, os cidadãos de Genebra descobriram que não podiam ficar sem ele e, em 1541, eles clamaram por sua volta. É compreensível que Calvino estivesse relutante em retomar o ministério pastoral em um lugar onde fora ridicularizado e rejeitado, mas ele sentiu que Deus o estava chamando de volta a Genebra. Dessa vez, Calvino insistiu em que a igreja fosse governada por uma constituição própria, aceita em juramento pelos cidadãos. As Ordenanças Eclesiásticas, como foram chamadas, concediam aos pastores e presbíteros da cidade autoridade plena para regulamentar o culto e a disciplina da igreja de Genebra. Armado com essa nova autoridade, Calvino retomou sua agenda rigorosa de pregação e ensino. Além de pregar duas vezes aos domingos, ele costumava pregar várias manhãs por semana e também dava palestras bíblicas e teológicas para estudantes que se preparavam para o ministério pastoral. O que Calvino pregava era, é claro, a Bíblia — versículo por versículo, capítulo por capítulo e livro por livro. Ao seguir esse método de exposição bíblica consecutiva, ele acabou escrevendo comentários a respeito de quase toda a Bíblia. Sua estrutura doutrinária foi a teologia da Reforma, resumida em suas famosas Institutas da Religião Cristã. Em outras palavras, Calvino era um calvinista. Ele ensinou cada uma das doutrinas defendidas posteriormente no Sínodo de Dort, desde a depravação total até a certeza da graça perseverante. A doutrina da predestinação absoluta — que “Deus, por sua vontade eterna e imutável, determinou definitivamente aqueles que, um dia, Ele admitiria à salvação” — ocupou um lugar especialmente importante na teologia de Calvino.

Alguns estudiosos questionam se ele acreditava na expiação definitiva, uma doutrina que não se tornou totalmente clara até o século dezessete, quando foi atacada pelos arminianos. Entretanto, não há dúvida de que Calvino acreditava que a morte de Cristo na cruz cumpriu, de fato, o que foi destinada a cumprir: a redenção dos eleitos. Também não há qualquer dúvida de que ele sustentava a eficácia da graça de Deus sobre o chamado eficaz do Espírito de Deus. Em todos os pontos de sua teologia, Calvino insistia que a salvação é um dom da graça divina, não uma conquista do esforço humano. Todo o objetivo de sua teologia, especialmente de sua soteriologia, era glorificar a Deus por sua graça soberana. Sua própria dependência da soberania de Deus é, talvez, melhor expressada em sua famosa oração: “Quando me lembro de que não pertenço a mim mesmo, ofereço meu coração, apresentado como um sacrifício ao Senhor.”Calvino e seu Calvinismo vieram a exercer uma influência profunda sobre a cidade de Genebra. Essa influência não veio por meio de coerção, como às vezes se pensa, mas principalmente por persuasão.O historiador e teólogo Alister McGrath, de Oxford, escreve:

Calvino não era um ditador de Genebra que governava a população com mão de ferro. Ele não foi sequer cidadão de Genebra em todo o tempo em que lá ficou, tendo assim seu acesso à autoridade política negado. Sua condição era simplesmente a de um pastor que não estava em posição de ditar ordens às autoridades magistradas que administravam a cidade. De fato, essas autoridades retiveram até o fim o direito de demitir Calvino, mesmo tendo optado por não exercer esse direito. Como membro do Consistório, ele era certamente capaz de fazer representações à magistratura em nome dos ministros — representações que, porém, eram ignoradas com frequência… A influência de Calvino sobre Genebra consistia, em última análise, não em sua posição jurídica formal (que era insignificante), mas em sua autoridade pessoal considerável como pregador e pastor.

 

O contato diário com a exposição sã da Bíblia feita por Calvino transformou a mente e o coração de Genebra. Os cidadãos abraçaram sua eleição como povo de Deus e seu chamado para construir uma cidade santa. Seu lema se tornou post tenebras lux — “após a escuridão, a luz”. Ao aprenderem a adorar o Deus da graça, especialmente pelo canto de salmos, Genebra se tornou uma cidade mais feliz. Ela também se tornou uma cidade mais íntegra. Em um esforço para eliminar a embriaguez e o adultério, as tabernas foram fechadas e o balneário público foi dividido, de modo que homens e mulheres pudessem tomar banho separadamente. Genebra se tornou uma cidade mais limpa e mais segura. Os exemplos desse fato incluem o projeto do próprio Calvino para um sistema público de esgoto e sua insistência em que os pais protegessem seus filhos instalando grades nas varandas das casas. Com o crescimento da reputação de Calvino, Genebra se tornou um refúgio para protestantes fugitivos da perseguição religiosa em outras partes da Europa. Para cuidar desses refugiados, Calvino estabeleceu um fundo para a hospitalidade cristã. Ele também organizou um diaconato para atender às necessidades dos pobres, que receberam oportunidade de trabalhar na fabricação de roupas. Genebra se tornou também uma cidade mais culta, pois Calvino estabeleceu uma escola — a famosa Academia de Genebra — para servir como um centro de excelência acadêmica. Isso estava de acordo com seu objetivo de educação cristã universal — que incluía uma escola para meninas. A Academia ajudou Genebra a se tornar um centro de missões: muitos dos pastores lá treinados foram enviados para evangelizar a França implantando novas igrejas. Além de realizar todas essas medidas sociais, Calvino estabeleceu um sistema para o cuidado espiritual dos membros da igreja.

Os pastores e presbíteros que formavam o Consistório reuniam-se semanalmente para resolver desavenças e disciplinar paroquianos que fossem pegos em pecado. Dependendo da situação, essas reuniões podiam servir como uma forma de resolução de conflitos ou de aconselhamento familiar. Quando era necessário aplicar a disciplina formal, isso era feito com o objetivo de incentivar o arrependimento genuíno. Com o tempo, o efeito do trabalho disciplinar do Consistório foi uma redução drástica da imoralidade pública. Como resultado dessas reformas, Genebra tornou-se uma cidade para a glória de Deus. Um historiador resume o alcance da realização do objetivo de Calvino — a criação de uma comunidade piedosa:

A limpeza era algo praticamente desconhecido em cidades de sua geração; epidemias eram comuns e numerosas. Ele convenceu o Conselho a fazer regulamentos permanentes para o estabelecimento de condições sanitárias e supervisão dos mercados. Mendigos foram proibidos nas ruas, mas um hospital e um asilo foram criados e bem administrados. Calvino trabalhou zelosamente pela educação de todas as classes e estabeleceu a famosa Academia, cuja influência chegou a todas as partes da Europa e até mesmo às ilhas britânicas. Ele impulsionou o Conselho a instalar a indústria de tecidos e de seda, estabelecendo as bases para a riqueza temporal de Genebra. Essa indústria… revelou-se bem-sucedida particularmente em Genebra porque Calvino, por meio do Evangelho, criou no indivíduo o amor ao trabalho, à honestidade, à economia e à cooperação. Ele ensinou que o capital não era uma coisa má, mas o resultado abençoado do trabalho honesto, e que ele poderia ser usado para o bem-estar da humanidade.

 

A Genebra de Calvino era um exemplo notável de transformação espiritual, moral e social. Não é de admirar que o reformador escocês John Knox tenha descrito a cidade como “a mais perfeita escola de Cristo que havia na terra desde o tempo dos apóstolos”. Para outro visitante, Genebra parecia “o milagre maravilhoso de todo o mundo”. Essa transformação urbana não foi realizada pelas doutrinas da graça, é claro, mas pelo ensino claro das Escrituras, entendidas a partir da perspectiva do sistema calvinista de doutrina com sua paixão imperecível por ver Deus glorificado em todos os aspectos da vida.

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