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Os altos altos e os baixos baixos

A Igreja está em apuros. Verdade ou mentira? Sem dúvida muitos já chegaram a essa conclusão. Dizer que todos enxergam isso seria um exagero, pois há uma multidão de fiéis que estão em festa. Celebram a bênção de mais um encontro gospel, mais uma conferência “profética” e mais uma música comovente – a “benção” da hora.

Não obstante essa ala festiva, muitos constatam que a Igreja anda mal. Inclusive a própria ala festiva é um dos sintomas dessa condição debilitada, como já expliquei no meu livro O Fim de Uma Era. Igrejas se enchem – não de fiéis, mas de torcedores, que não resistem um “louvorzão” do qual podem voltar arrepiados e suados. As frases de vitória e afirmações de superação enchem a boca, decoram os carros e incendeiam a imaginação com conquistas a serem alcançadas. Entramos na era da igreja de massa, a igreja populista. Os membros se perdem na multidão. Gostam de se sentir parte de algo maior do que eles mesmos. Como uma torcida organizada que vai ao delírio após mais um gol e todos na arquibancada são contagiados pela euforia, querem ser movidos pelas afirmações absolutas de benefícios que serão recebidos do alto, “em nome de Jesus!”. Afinal, o povo precisa. Deus quer. E a fé “move montanhas”.

Mas é no seio desse movimento que mora um paradoxo. Por mais que todos se engajem em eventos e igrejas de massa, indo ao delírio junto à multidão, sua jornada de fé é profundamente privatizada. Entenda: na multidão não há responsabilidade. A psicologia de massa reafirma o anonimato em meio à onda de gente. A união se manifesta tão somente no momento do evento, seja esse um “cultaço”, uma conferência ou um “show gospel”. Claro que muitos assistem na companhia de seus amigos. Mas o evento não adentra a vida particular de cada um. A vida pessoal de cada espectador fica ilesa, incólume e permanece completamente divorciada de tudo o que acontece lá. Tal qual a dinâmica de quem assiste a um telejornal, uma vez que muda de canal o descompromisso se confirma. Esquecemos logo o que vimos e ouvimos, a não ser que sirva de assunto para um bom bate-papo pontual. Boatos, notícias, piadas e outros elementos do gênero são o que temos em comum. É isso que compartilhamos equivocadamente, pensando que comunhão cristã é feita dessas coisas.

Mas comunhão cristã é algo muito mais profundo. É algo que invade o nosso mundo privatizado. Comunhão cristã faz com que tenhamos de viver uma vida transparente, uma vida de responsabilidade e dependência mútua. Se um chora, todos choram. Veja o que Paulo disse:  “Quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele. Ora, vocês são o corpo de Cristo, e cada um de vocês, individualmente, é membro desse corpo” (1 Co 12.26,27). A imagem do Corpo é usada por Paulo para mostrar que somos mais do que uma agremiação associativa. Somos mais do que um clube religioso. Estamos ligados. Dependemos uns dos outros. E, consequentemente, a qualidade da nossa vida cristã está inexoravelmente ligada a esse elo muito mais do que social. Em resumo, ninguém anda só.

A vida espiritual é por natureza uma vida interdependente. É uma vida que se sustenta somente quando é levada em comunhão profunda com outros. Essa comunhão envolve alegrias, choro e disciplina também. Jesus disse:

Se o seu irmão pecar contra você, vá e, a sós com ele, mostre-lhe o erro. Se ele o ouvir, você ganhou seu irmão. Mas se ele não o ouvir, leve consigo mais um ou dois outros, de modo que ‘qualquer acusação seja confirmada pelo depoimento de duas ou três testemunhas’. Se ele se recusar a ouvi-los, conte à igreja; e se ele se recusar a ouvir também a igreja, trate-o como pagão ou publicano. “Digo-lhes a verdade: Tudo o que vocês ligarem na terra terá sido ligado no céu, e tudo o que vocês desligarem na terra terá sido desligado no céu. “Também lhes digo que se dois de vocês concordarem na terra em qualquer assunto sobre o qual pedirem, isso lhes será feito por meu Pai que está nos céus. Pois onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles. (Mt 18.15-20)

Veja como as palavras do Mestre nos parecem surreais e soam estranhas aos nossos ouvidos. Até parece que há “clima” para um confronto desses. E que líder se atreveria a se meter na vida do seu rebanho dessa maneira? Exclusão? Só para engrossar as fileiras dos desigrejados? Perdemos a capacidade de operacionalizar um ato tão vital como a reconciliação responsável entre irmãos. Resumo da ópera: a Igreja está ficando desalmada. Os membros do Corpo estão desligados. Entramos na era do “cada um por si e Deus por todos”. Todavia, apoio mútuo é só o começo, o mínimo que se espera de um corpo. O vigor da nossa fé depende de uma ligação forte entre irmãos. Calamitosamente, essa ligação não passa de teoria, para a grande maioria da Igreja dos nossos tempos.

Um dos resultados dessa vida cristã desalmada é o ciclo de entusiasmo, seguido por profundo desânimo, seguido novamente por mais entusiasmo e desânimo. O ciclo acaba criando uma descrença na própria fé. Agora, quanto maior a base, quanto mais larga a fundação, mais uma estrutura se firma, ganha solidez e estabilidade. Quanto menor e mais frágil, menos constância terá. Se eu tiver de “pendurar” a minha jornada na minha própria força de vontade lamento dizer que ficarei muito fragilizado. Veja que a união não só faz a força. A união faz a fé.

E a cada um de nós foi concedida a graça, conforme a medida repartida por Cristo. … E ele designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com o fim de preparar os santos para a obra do ministério, para que o corpo de Cristo seja edificado, até que todos alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, e cheguemos à maturidade, atingindo a medida da plenitude de Cristo. O propósito é que não sejamos mais como crianças, levados de um lado para outro pelas ondas, nem jogados para cá e para lá por todo vento de doutrina e pela astúcia e esperteza de homens que induzem ao erro. Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo. Dele todo o corpo, ajustado e unido pelo auxílio de todas as juntas, cresce e edifica-se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza a sua função. Assim, eu lhes digo, e no Senhor insisto, que não vivam mais como os gentios, que vivem na futilidade dos seus pensamentos. Eles estão obscurecidos no entendimento e separados da vida de Deus por causa da ignorância em que estão, devido ao endurecimento dos seus corações. Tendo perdido toda a sensibilidade, ele se entregaram à depravação, cometendo com avidez toda espécie de impureza. Todavia, não foi assim que vocês aprenderam de Cristo. (Ef 4.7,11-20) 

Os “gentios” não sabem viver em união. “Unidade” é um ideal (e um pretexto) que só volta à tona a cada eleição. O cristão precisa entender a diferença que Cristo opera. Ele nos leva a abraçar uma unidade que o mundo não conhece. Sem essa unidade, sem essa ligação com o Corpo, as ondas me levarão. Então meus altos serão cada vez mais altos; meu baixos, cada vez mais baixos. Não há santo que aguente. Mais cedo ou mais tarde naufraga.

Na paz,

+W

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  • Bispo, obrigado pela oportunidade de refletir que seus textos nos trazem.

    Essas oscilações realmente nos abalam, mas viver em unidade cristã nos mantém de pé, sustentados pelo poder do Espírito Santo. Quando entendemos que Ele é quem nos une e nos colocamos em posição de submissão, somos levados a sofrer com os que sofrem e a se alegrar com os que se alegram, movidos pelo amor divino derramado sobre nós.

    O mundo vive uma união sustentada em seus próprios interesses e o seu ápice sempre é a separação. Cristo nos leva a viver o contrário, pois a unidade que vem pela fé deve nos aproximar nos momentos difíceis, e assim suportarmos uns aos outros em amor.

    Que o Senhor continue te inspirando.

  • Concordo com o senhor em suas colocações Bispo, em número, gênero e grau , infelizmente…

    O contexto de “corpo de Cristo” que grande parte da religião moderna vive, é o contexto de um corpo esquartejado, onde a insensibilidade opera da maneira mais implacável possível. Cada qual vivendo em favor do seu próprio individualismo e entendimento, tirando vantagens com o sofrimento alheio.

    Mas O Senhor é conhecedor de todas as coisas e a contento, irá colocar cada parte deste corpo no seu devido lugar…

    Indubitávelmente, Cristo “nos leva a abraçar uma unidade que o mundo não conhece”, a unidade do amor. Não o Eros, mas o Ágape, o amor oriundo da cruz de Cristo, pois, de fato, este deve ser o verdadeiro ideal da igreja fiel, que resplandece a sua luz em meio às trevas deste mundo.

    Maravilha !
    A paz do Senhor Jesus !

    “Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha.” (Mateus 12:30)

  • Prezado Bispo, boa noite,paz!

    O que estarei relatando abaixo não tem nada haver com o assunto que o Sr. com tanta clareza expressou neste artigo. Mas , sim com uma expressão que o Sr. usou no nosso presbitério,”A igreja como um lugar opcional do fim de semana”.
    Isto me chamou bastante a atenção esta expressão tão bem colocada pelo senhor nesta sociedade que vivemos onde gastamos o nosso tempo e energia com tantas coisas que talvez não precisamos tanto. Criando assim, a ideia que a comunhão dos santos manifestada na igreja seja algo opcional na semana e nos fins de semana, uma vez que estamos tão cansados com toda esta correia atras dos nossos “sonhos de consumo”.

    Bispo Walter, se não for inconveniência da minha parte , haveria possibilidade do senhor escrever um artigo com este tema: “A igreja opcional”. Creio que este assunto seria também dentre todos os que o senhor já postou algo de grande reflexão para nós sacerdotes.

    Desde de já, peço desculpa se esta solicitação possa se tornar inconveniente. Agradeço pela oportunidade dada em expressar algo que gostaria de ouvir de uma pessoa que não só pensa com a mente, mas também com o coração sacerdotal.

    Graça e paz.