Início / Artigos / O Livre Arbítrio, na visão Calvinista

O Livre Arbítrio, na visão Calvinista

Livre Arbítrio, uma expressão usada por todo o mundo, mas sem o cuidado de uma definição ou até mesmo com ausência total de definição.

Vejamos a definição que alguns homens nos oferecem, da expressão Livre Arbítrio:

– “É uma faculdade da razão pela qual se pode discernir o bem e o mal, e da vontade, pela qual se pode escolher um ou outro.” – Orígenes

– “É uma faculdade da razão e da vontade pela qual se escolhe o bem, quando se tem a assistência da graça de Deus, e o mal, quando não se tem essa assistência.” – Agostinho de Hipona

– “É uma concessão feita à liberdade do querer, que não se pode perder, e um julgamento indeclinável da razão.” – Bernardo de Claraval

Petrus Lombardus, o Mestre das Sentenças, e os doutores escolásticos preferiam a definição de Agostinho, porque é mais fácil e não exclui a graça de Deus, sem a qual eles reconheciam que a vontade humana não tem nenhum poder.

Mas o que significa a palavra “arbítrio”? Para Petrus Lombardus e os doutores escolásticos, a palavra “arbítrio” deve referir-se à razão, cuja função é discernir o bem e o mal. Já o adjetivo “livre” ou “franco”, que se junta à palavra “arbítrio”, pertence propriamente à vontade, a qual pode ser inclinada para uma parte ou para outra. Assim, Tomás de Aquino, entende que a liberdade ajusta-se propriamente à vontade: “O livre-arbítrio é uma virtude eletiva que, intermediária entre a inteligência e a vontade, todavia inclina-se mais para a vontade”.

A força do livre-arbítrio, como vimos até aqui, consiste na razão e na vontade. Quanto a sua extensão, geralmente lhe são atribuídas coisas externas, não referentes ao reino de Deus, mas ao conselho e à escolha dos homens; a verdadeira justiça é atribuída à graça de Deus, e a regeneração, ao seu Espírito. Assim, entendemos que há três tipos de querer: o sensitivo, o animal e o espiritual. Quanto aos dois primeiros, o homem é declarado livre, mas, quanto ao terceiro, se diz que é operação do Espírito Santo.

Podemos observar que aqueles que tratam do livre-arbítrio não dão muita atenção às obras externas, pertencentes à vida corporal, mas consideram principalmente a obediência à vontade de Deus. Calvino considerava esta segunda questão como a principal, ao mesmo tempo em que não negligenciava a outra: “O homem não tem livre-arbítrio para praticar o bem, a não ser que seja ajudado pela graça de Deus e pela graça espiritual ou especial, dada tão-somente aos eleitos, mediante a regeneração”. Petrus Lombardus declara que o homem não tem o livre-arbítrio no sentido de que ele é auto-suficiente para pensar ou praticar tanto bem como o mal, mas unicamente no sentido de que ele não está sujeito à obrigação forçada, ao constrangimento. Essa liberdade não sofre impedimentos, por mais malignos e servos do pecado que sejamos, e ainda que não consigamos fazer outra coisa que não seja o mal. Assim, vemos que o homem não tem o livre-arbítrio porque tem a liberdade de escolher tanto o bem como o mal, mas ele, o homem, faz o que faz por que quer, e não por constrangimento.

Ora, que bela liberdade é essa, diz Calvino, que o homem é constrangido a servir o pecado, mas que o faz numa servidão voluntária, e que a sua vontade é mantida prisioneira pelos laços do pecado! E, prosseguindo nas palavras de Calvino, quando se atribui ao homem o livre-arbítrio, quantos não haverá que incontinenti se julgarão mestres e senhores do seu juízo e da sua vontade, e capazes de fazer girar a virtude de um e de outro lado? Poder-se-ia dizer que o perigo poderia ser extirpado, desde que as pessoas sejam advertidas quanto ao sentido da expressão “livre-arbítrio”. Para Calvino, o melhor seria dispensar tal vocábulo, porque, uma vez inventado, é logo bem recebido por quem não leva em conta a exposição feita pelos antigos; e o toma como motivo para orgulhar-se em si mesmo. Assim, tal vocábulo se torna um enfeite soberbo para algo insignificante.

Agostinho, em seus escritos, confessa que a vontade do homem não é livre sem o Espírito de Deus, visto que é dominado por suas concupiscências. E mais, que depois que a vontade é dominada pelo mal em que caiu, a nossa natureza perdeu a liberdade. O homem, ainda segundo Agostinho, fazendo mau uso do livre-arbítrio, perdeu-o, e perdeu-se e, por consequência, o livre-arbítrio está em cativeiro e não pode fazer bem algum.

Há uma sentença de Cipriano, muitas vezes citada por Agostinho, na qual ele, Cipriano, anula tudo do homem, a fim de que este aprenda a buscar tudo em Deus: “Não temos por que nos glorificar, porque não existe nenhum bem que seja nosso.” O mesmo podemos ver no que disse Echère, antigo bispo de Lião: “Cristo é a Árvore da vida; quem estender a mão para ela viverá; e a árvore do conhecimento do bem e do mal é o livre-arbítrio; quem dela provar morrerá.” E, Crisóstomo diz o mesmo: “O homem não somente é pecador por natureza, mas não é senão inteiramente pecado.” Assim, se não existe bem algum em nós, se, da cabeça aos pés, o homem nada mais é que pecado, se nem sequer é lícito que ele queira o livre-arbítrio, como lhe será lícito repartir entre Deus e o homem o louvor das boas obras?

Calvino bem nos diz que, “tira bom proveito do conhecimento de si mesmo aquele que, entendendo inteligentemente a sua calamidade, a sua pobreza, a sua nudez e a sua ignomínia, fica abatido e arrasado”. E, continua: “Porque não há perigo de o homem humilhar-se exageradamente, desde que entenda que poderá recuperar em Deus o que lhe falta”.

O homem não pode atribui a si mesmo nem um grão de bem, além da medida, que não se estrague pela confiança vã, e que não se faça culpado de sacrilégio por usurpar a glória de Deus. É agradável pensar em termos em nós tanta virtude ou poder que fiquemos satisfeitos com nós mesmos. Mas, sempre que essa cobiça nos entre na mente, de querermos ter alguma coisa como sendo propriamente nossa, ou seja, pretender que isso está mais em nós do que em Deus, precisamos entender que essa ideia não nos é apresentada por outro conselheiro senão aquele mesmo que induziu os nossos primeiros pais a quererem ser “como Deus, … conhecedores do bem e do mal”.

E o que nos diz as Escrituras? “Maldito o homem que fonia no homem, faz da carne mortal o seu braço…” E, também: Deus, “não faz caso da força do cavalo, nem se compraz nos músculos do guerreiro. Agrada-se o Senhor dos que o temem e dos que esperam na sua misericórdia”. E, mais ainda: “Faz forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor”. Prosseguindo: ele, “prostra de fadiga os eu estão na flor da idade, põe em decadência os fortes e fortalece aqueles que nele esperam”.

E, há ainda as promessas que devemos ter, fixadas em nossa memória: “Derramarei água sobre o sedento e torrentes sobrea a terra seca”. E mais: “Ah! Todos vós, os que tendes sede, vinda às águas”.

Livre-arbítrio?! Alguém há que se atreva a afirmar possuí-lo, ou tê-lo? Ao assim fazer, pode então negar estar se atribuindo a capacidade divina de não apenas conhecer o bem e o mal, mas também a capacidade de escolher, sempre, o bem?

Que situação… que tragédia…

Mas não devemos nos esquecer das promessas que nos foram dadas: “Nunca mais te servirá o Sol para luz do dia, nem com o seu resplendor a Lua te alumiará; mas o Senhor será a tua luz perpétua”. E, nas palavras de Calvino: “Certamente o Senhor não extinguirá a luz do Sol ou da Lua para os seus servos; contudo, mais do que manifestar por eles a sua glória, ele destrói a nossa confiança nas coisas que, em nosso humano conceito, são as mais excelentes”.

Sicut scriptum est…

Bibliografia utilizadas na construção deste artigo:

– As Institutas, volume 1 (João Calvino – Editora Cultura Cristã)

(Há, no artigo acima, várias compilações da obra acima, não havendo indicação por aspas ou referências, a todas elas. Minha intenção é incitar o leitor a pesquisar nessa obra e, assim lê-la.)

Textos bíblicos sugeridos para consultas e estudos:

– Gn 3.5; Jr 17.5; Sl 147.10,11; Is 40.29; Tg 4.6; Is 44.3; Is 55.1; Is 60.19; Rm 6.16-23; Jo 8.34-36; Gl 5.1,13.

Por Ricardo V. Castro

Fonte: Sociedade Calvinista

Leia também

leia+6

A leitura inspecional Parte 3 | por Gabriel Carvalho

Dando sequência à nossa série de textos “Leia mais e melhor”, finalizaremos neste texto as …